Jornada do herói

Autoconhecimento: como a jornada do herói pode ajudar?

O autoconhecimento é como um superpoder. Munido de sabedoria sobre quem se é, o indivíduo caminha mais seguro pelo mundo. Quando não se comporta como uma caixinha de surpresas para si mesmo, é capaz de se abrir de verdade para as experiências. Porque quem conhece a si mesmo sempre está atendo e calmo. Consegue lidar com o que a vida lhe apresenta pois se liberta do sofrimento.

Durante este Carnaval fiz uma imersão ao mundo de Joseph Campbell, o cara que sistematizou a jornada do herói. Durante esses dias entrei na folia do mito, assisti a sua famosa entrevista com o jornalista Bill Moyers divulgada no Brasil pela TV Cultura e li seu livro publicado em 1949 chamado O Herói de Mil Faces.

Para minha surpresa, o monomito, que influenciou e ainda influencia obras de arte em vários formatos diferentes, desde filmes a livros e séries de TV, também pode ser utilizada como uma ferramenta de autoconhecimento. Como assim? Joseph Campbell acreditava que todos os mitos criados pela humanidade eram verdadeiros no sentido de oferecer uma espécie de guia espiritual para cada ser humano. Todos estamos numa jornada e temos diante de nós a possibilidade de nos tornarmos heróis ou heroínas. Basta seguir a voz que diz: “Follow your bless“.

Pensando nisso, escrevi um artigo para falar mais sobre a jornada do herói, tudo o que aprendi nesse feriadão sobre o pensamento de Campbell e como isso tudo pode servir de base ao autoconhecimento.

O que é a jornada do herói?

A jornada do herói é uma forma de entender a trajetória das pessoas. Ela é um padrão. Quem identificou esse padrão foi Joseph Campbell, um estudioso de mitologia e religião comparada.

Campbell estudou várias culturas antigas, religiões, crenças e lendas populares pelo mundo. Ao contrário da maioria das pessoas, que buscavam as diferenças entre culturas, ele abriu seus olhos para as semelhanças. Assim, conseguiu traçar um caminho em comum, que aparece nas principais narrativas mitológicas e religiosas da humanidade.

De acordo com a visão de Campbell, Jesus Cristo, Buda e Krishna têm várias coisas em comum. Além de serem figuras muito conhecidas e acumularem seguidores cheios de fé pelo mundo, eles possuem uma trajetória, uma história de vida, pontuada por acontecimentos que, se não são idênticos, carregam uma simbologia muito parecida.

Joseph organizou esses pontos em comum entre esses três mitos e muitos outros. Na verdade, ele pesquisou essas coisas durante toda uma vida, que foi até os 83 anos! E criou a narratologia ou o monomito, mais conhecidos como jornada do herói. Esse roteiro básico é o resultado de anos de pesquisa e um interesse grande de entender como as pessoas contam suas histórias e, também, como elas vivem as grandes aventuras da vida diária.

A jornada do herói pode ser uma ótima ferramenta para escritores e roteiristas. Prova disso é que George Lucas a utilizou para criar a saga Star Wars e J. K. Rolling também se valeu dela para criar Harry Potter. E aqui ficamos com epenas dois exemplos de uma legião de artistas.

Mas a narratologia não é útil apenas para roteiristas de Hollywood e escritores de Best Sellers. Para as pessoas que buscam compreender melhor a si mesmas e saber em que ponto se encontram de sua própria jornada, o monomito pode ser uma ferramenta extraordinária.

Pode ser que você não seja o herói que vai redimir a humanidade de seus erros, é muito provável que você não se veja como um Jedi ou como Harry (e caso você se veja dessa forma, melhor ainda), mas, certamente, possui sua própria história e passa por grandes transformações em sua vida. Então, que tal entender como elas funcionam?

Como funciona a jornada do herói?

A jornada do herói  mostra a síntese das aventuras dos maiores mitos da humanidade. Ela possui um formato cíclico, porque pode e deve se repetir. Atualmente, a leitura mais comum é a que classifica a jornada em 12 etapas. Essa classificação faz uma síntese das ideias de Campbell, afinal, esse grande intelectual escreveu  O herói é alguém que deu a sua vida por algo maior que ele mesmo. É uma pessoa comum que recebe um chamado para a aventura e justamente porque o aceita, se torna especial.

Darei alguns exemplos da ficção para ajudar você a entender a dinâmica da coisa. Mas, assim, você pode se colocar no lugar do herói, fica à vontade, ok? Tenho certeza de que você já viveu alguma aventura por aí. Até porque viver é uma ventura. Ou deveria ser.

1. A vida comum

Esse é o ponto de partida da aventura e ela não é muito emocionante. Na verdade, esta etapa pode se arrastar por toda uma vida, dependendo das escolhas do herói.

A vida comum é a vida levada no automático, aquela que construímos em função de expectativas de outras pessoas. Ou a vida em que nossas ações são pautadas mais pelo medo do que pelo que realmente queremos ou acreditamos ser o correto a se fazer. Às vezes ela é bem ruim, causa sofrimento e aprisiona o herói numa série de situações que se repetem. Erros se repetem, o sofrimento e, principalmente, o herói está estagnado. Quem não se lembra do pobre Harry vivendo aquela vida sem graça junto aos Dursley? Ou de Alice, garotinha questionadora e vivendo uma vida um tanto enfadonha?

Nem sempre o herói está descontente. Na verdade, às vezes ele não vê suas limitações ou está satisfeito com elas. Como o Bilbo Bolseiro, sujeito totalmente avesso à aventuras, amante da vida pacata do seu querido lar, feliz por ter comida e conforto.

2. O chamado da aventura

A vida comum é, de repente, invadida por algo novo. Essa novidade pode aparecer de várias formas: uma situação que desafia o herói, um pedido de ajuda ou simplesmente algo que o atrai. “Follow your bliss” é a frase que Campbell gosta de usar e ela significa “Siga a sua bênção”. É aquela ideia que não sai da cabeça, o chamado para que o herói siga seu próprio caminho, cheio de dores, alegrias, sofrimento e êxtase.

Para o Harry, o chamado foi dado por Hagrid, que chegou para mandar a real: “Você é um bruxo, cara”. Para o Bilbo, foi Galdalf, dando logo uma festa em sua casa, tirando o sossego do pequeno hobbit. E, finalmente, para Alice, o chamado foi dado pelo coelho apressado, despertando sua curiosidade.

3. A recusa do chamado

Essa fase pode acontecer ou não. Na maioria dos casos, o herói se sente inseguro diante da possibilidade de aventurar-se. Deixar o status quo, mesmo que ele não seja lá aquelas coisas, pode despertar o medo. O interessante é que isso não diminui o herói, afinal, somos todos falhos e temos nossa insegurança. A nossa postura diante desse medo é que vai mudar as coisas. Quando decidimos sair da zona de conforto, é aí que a vida, ou a aventura, começa de verdade.

Há os heróis que realmente se negam a partir para a aventura. Esses estão fadados a continuar na mesma vida, amedrontados, agarrados a certezas de pedra e se privando de se tornar alguém melhor. Acontece…

4. O auxílio sobrenatural

Aceito o desafio, o herói receberá um help básico de uma figura sábia. Pode ser um homem velho, um mago, uma anciã meio bruxa, um tutor, enfim, uma figura que represente uma sabedoria ancestral e mágica. Essa ajuda pode ser em forma de um amuleto, uma arma, um poder ou uma dica. Um bom conselho pode ser útil em algum momento da caminhada, não?

Harry Potter teve Dumbledore e Bilbo contou com o Gandalf. E você, já teve alguma figura sábia que te presenteou com uma ajuda valiosa?

5. A passagem pelo primeiro limiar

Recebido o presentinho, o herói adentra, finalmente, a aventura. No campo da ficção e dos mitos, esse limiar é a fronteira entre o mundo comum e o novo, mágico. É o espaço diferente onde a aventura começa, um mundo onde as regras são novas, há pessoas novas a conhecer e um longo caminho a trilhar. Às vezes há um guardião, que introduz o herói nesse novo lugar, às vezes ele o descobre por si próprio.

Harry Potter chegando ao Beco Diagonal é um belo exemplo. Assim como Luck Skywalker naquela cena da cantina, onde ele conhece diversas criaturas que já viajaram pelo espaço.

6. O ventre da baleia

Esse apelido fofo tem a ver com a história de Jonas, esse rapaz que passa um tempo dentro da barriga do enorme animal marinho e sai de lá transformado. Esse período de reclusão é uma imersão no novo mundo. Lá, o herói entende melhor como esse mundo novo funciona, se acostuma com as regras do jogo, nem que seja para subvertê-las logo em seguida. É um tempo de aprendizado, de assimilação, observação e reflexão atentos.

7. O caminho de provas

Esse você deve saber como funciona. O caminho das pedras, as tarefas que trazem aprendizado, o longo processo de formação. Ele envolve uma série de coisas que precisam ser feitas, algumas envolvendo perigos e barreiras, todas relacionadas a habilidades a serem aprendidas. Antes de ser o máximo, o herói desse mundo mágico precisa se provar e essa fase exige persistência.

8. O encontro com a deusa

Passados os perrengues, o herói vai encontrar com a deusa. O que isso significa? Bem, a mulher simboliza a vida, seu corpo é o veículo da vida. O herói se encontra com essa figura no ponto mais afastado da sua vida comum e nela encontra a figura da mãe, da irmã, da amante ou da noiva. Essa deusa pode conceder ao herói uma trégua ao sofrimento, um acolhimento para suas dores, um momento de reflexão profundo ou o reequilíbrio das forças do herói. Mas não só. A deusa pode representar também uma advertência, uma punição, uma armadilha, um desejo que não é consumado. Em alguns mitos o encontro com a figura feminina pode representar um perigo, uma tentação que pretende desviar o herói de seu caminho. Tudo depende da história do herói e de sua relação com as mulheres de sua vida.

9. A sintonia com o pai

Campbell bebeu muito da psicanálise para sistematizar o monomito. Por isso, o ponto alto da jornada do herói, o maior desafio de todos, o chefão com quem o herói se encontra é uma figura que representa o pai. No caso de Star Wars, George Lucas levou a coisa bem ao pé da letra… rs. Assim como o encontro com a deusa, a sintonia com o pai pode acontecer de forma amistosa ou de conflito. Isso depende um pouco de cada história particular. Mas, a questão central é que o herói sempre tem que acertar as contas com essa imagem paterna, seja para lutar com ele e derrotá-lo, seja para reconciliar-se com ele e se dar conta de que, na verdade, ele não é tão diferente assim de seu próprio pai. Nessa etapa o herói geralmente precisa recorrer à ajuda mágica que recebeu lá no início da sua caminhada. Pode ser um conselho, uma arma, um poder mágico ou um truque. Ao final desse encontro, o herói pode conseguir tomar do chefão algum item de valor e sair fugindo. Ou pode simplesmente adquirir algum conhecimento essencial.

10. A apoteose

Apoteose significa endeusar alguém. Esse é o momento em que o herói recebe o devido reconhecimento. Pode ser de muitos ou de apenas uma pessoa. Às vezes só ele é capaz de reconhecer a magnitude de sua façanha. Mas o importante é que esse momento é o de celebrar todas as transformações em que ele passou pelo caminho. Muitas vezes acontece uma grande festa, um jantar, uma comemoração que reúne as pessoas em torno do herói. É o momento de curtir as conquistas e recarregar as energias depois de várias batalhas.

11. O retorno

Depois de vividas tantos momentos intensos e depois de ser reconhecido por seus feitos, é hora do herói retornar ao mundo comum. E isso não é fácil. A aventura causou tantas mudanças no protagonista que ele não consegue mais se ver naquela antiga vida. Ele deu um boi para não entrar na briga e agora está disposto a dar uma boiada para não sair. Nesse momento, o herói se torna senhor de dois mundos e, mesmo depois de aceitar que a aventura chegou ao fim, quando volta, as coisas não são mais as mesmas. Externamente podem até continuar iguais, mas por dentro o herói amadureceu, mudou. E isso faz toda a diferença.

12. Liberdade para viver

Após o retorno existe o desfecho dessa aventura. É o momento em que o senhor de dois mundos encerra esse ciclo e segue sua vida normal. O sentimento de “lar doce lar” é forte. É até reconfortante prosseguir com a rotina depois de tanto perrengue. E, afinal, o herói sabe que a jornada é cíclica. Cedo ou tarde outro chamado soprará aos seus ouvidos.

Entenda sua própria jornada

Pode ser que você não tenha compreendido tudo sobre a jornada do herói. E tá tudo certo, pois esse tema é vasto e exige muita reflexão. O importante é que, se você se interessar em saber mais sobre essa forma de pensar a vida, pode encontrar uma ferramenta de autoconhecimento.

Gostei muito da ideia do monomito como uma forma de ver a minha própria vida como uma aventura. Isso pode me ajudar a entender o que estou vivendo e o que me trouxe até aqui. Outro tesouro que encontrei nas ideias de Campbell é a universalidade dos mitos. Todos os mitos são realidade se vermos cada um deles como mensagens e formas de reflexão que simbolizam nossas experiências como ser humano. Fiquei muito interessada em ler mais sobre outras culturas e aprender com as grandes lendas da humanidade!

Já parou para pensar em qual etapa da jornada você se encontra agora? Qual é o seu chamado para a aventura? Para quem quer se aprofundar no pensamento de Campbell, não posso deixar de indicar três coisas:

  1. O poder do mito: entrevista de Bill Moyers com Joseph Campbell em 6 episódios;
  2. O herói de mil faces: livro de Campbell em que ele explica a jornada do herói e mais um monte de coisas que vão explodir sua cabeça (pelo menos foi isso que aconteceu comigo);
  3. A jornada do herói: a biografia de Joseph Campbell, organizada por Phil Cousineau e publicada no Brasil pela Editora Ágora (minha próxima leitura sobre o tema).

E, caso você esteja buscando lições de sabedoria para viver uma vida melhor, confira esse artigo aqui:

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